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  • Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

TORTO ARADO



Torto Arado


Itamar Vieira Junior



O laureado romance do baiano Itamar Vieira Junior, Torto Arado (o livro venceu os prêmios, Leya, de 2018, e Oceanos e Jabuti, de 2020), insere-se confortavelmente em duas marcadas tradições literárias: a primeira, mais abrangente, é aquela que o escritor mexicano, Carlos Fuentes, trata brilhantemente em um de seus mais conhecidos ensaios, no qual aponta uma linha que perpassa a literatura latina desde Miguel de Cervantes (e podemos entendê-la mais amplamente se a estendermos um pouco e incluirmos Virgílio, Dante e outros escritores anteriores a Cervantes),ou seja, a chamada literatura fantástica, ou mágica, como querem alguns críticos (os epítetos são vários). Segundo Fuentes, o elemento fantástico na literatura latina faz parte indelével de sua formação e de seu desenvolvimento. Mais recentemente, autores como Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Gabriel Garcia Marques, o nosso Murilo Rubião, popularizaram este subgênero da literatura. Entretanto, Machado de Assis, com suas Memórias Póstumas de Brás Cubas, já nos indicava que o fantástico estava aderido à nossa tradição literária de origem latina. A segunda tradição que a obra de Itamar Vieira Junior se insere, está ligada especificamente à literatura brasileira (não que outras literaturas latinas, como a mexicana, com Juan Rulfo, por exemplo, ou a colombiana, a argentina, etc, não tenham esta forte tradição enraizada em suas páginas literárias), que é o romance regionalista, que durante as décadas de 30, 40, 50 e 60, dominou nossas letras com obras díspares e escritores diversos entre si, como Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Lins do Rego, Guimarães Rosa e tantos outros.


No caso da literatura regionalista brasileira, mesmo que a partir da década de setenta tenha diminuído consideravelmente sua incidência em nossas publicações, ela nunca abandonou totalmente os anseios literários de nossas novas gerações de escritores. Em 1991, para citar um exemplo emblemático, Francisco J. C. Dantas, causou furor em nossa crítica literária com o lançamento de seu romance, Coivara da Memória, que segundo palavras de Benedito Nunes:


"Tão ardilosa quanto o tempo, esta Coivara - uma cartilha da memória - que o enfrenta e nos seduz, é uma escrita de implantação. Significando o que se enraíza como um vegetal, aquilo que se arraiga em profundas camadas, como raiz de planta envelhecida, implantação é, enquanto metáfora, a palavra que melhor exprime a fusão, através de uma só perspectiva romanesca, dos dois solos em que assenta Coivara da Memória: o solo como chão regional, como terra, suporte do patriarcalismo rural, do nordeste, a que se liga pela lembrança o personagem-narrador, e o solo literário, de afloramento das muitas tradições ficcionais - do regionalismo ao mítico supraregionalismo de Grande Sertão: Veredas - microscopicamente incrustadas na matéria e na forma deste belo romance de Francisco José Costa Dantas.”

Poderíamos citar outros exemplos que vêm mantendo viva esta nossa “enraizada” tradição literária, mas não é o caso deste pequeno ensaio. Torto Arado, de Itamar Vieira Junior entretanto, consegue um feito - além de suas inúmeras premiações coroar a exemplar trajetória de vida e de formação literária de seu autor - não muitas vezes alcançado com êxito, seja na literatura brasileira, seja na literatura latino americana como um todo, qual seja: unir estas duas tradições de forma harmônica e equilibrada. Temos, claro, vários casos de sucesso nesta empreitada, como o já citado Juan Rulfo e seu Pedro Páramo; na própria literatura mexicana, mais recentemente (1989), temos o romance Como Água Para Chocolate (nem tão regionalista assim, mas ambientando seus personagens em um rancho no interior do país); Gabriel Garcia Marques e sua saga de romances que têm a mágica Macondo, vilarejo incrustado no interior da Colômbia, como cenário; e no Brasil não poderíamos deixar de citar outro autor que logrou êxito nessa sinergia, Ariano Suassuna e seus universos mágicos que dão colorido ao árido sertão do interior da Paraíba e de sua querida Taperoá.


Voltando a Torto Arado, Vieira Junior conseguiu, com extrema competência literária, nos legar um romance com as melhores características regionalistas, e ao mesmo tempo inserir uma pitada de fantástico em suas páginas. O romance nos conta a história de Bibiana e Belonísia, duas irmãs quilombolas que vivem com sua família e que são exploradas, assim como tantas outras famílias, pelo sistema de trabalho imposto nas fazendas do norte e nordeste brasileiro (e em menor grau em outras regiões do país) nas décadas que se seguiram à abolição da escravatura no Brasil. O romance nos descreve, de forma crua, mas em uma linguagem de puro lirismo prosaico, o modus vivendi dessas pessoas, suas crenças (as festas de jarê, o candomblé), suas rotinas de trabalho no campo e em casa, seus medos, sonhos (poucos), suas angústias, e principalmente sua latente desesperança em um futuro melhor. O autor nos apresenta um rico rol de personagens, desesperançosos porém fortes, principalmente as mulheres. Elas são a grande força vital do livro, assim como a terra para suas plantações. Além das duas protagonistas, temos Maria Cabocla, Donana, Salu, Miúda, todas elas gravitando em volta da passiva, mágica e perseverante figura de Zeca Chapéu Grande, patriarca, cavalo de espírito, curandeiro, parteiro e conselheiro da comunidade. Tudo isso descrito em um estilo literário fiel aos nossos grandes romances regionalistas, onde a sofisticação formal está a trabalho do tom pueril, cru e melancólico dos homens da terra:


Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali retirávamos nosso sustento.


Esse dia vive na minha memória. Não se apaga nem se afasta ainda que envelheça. O sol era tão forte que quase tudo ao alcance de minha visão estava branco, refletindo a luz intensa do céu sem nuvens. Meu pai retirou o chapéu, o calor fazia minar de seu corpo um suor grosso que lhe lavava o rosto, escorrendo pela fronte e pelas têmporas. Escorria pelo lado anterior de seus braços, formando grandes manchas em sua camisa surrada. O barro cobria sua calça, sua enxada, seus braços, o chapéu largo em suas mãos. Eu atirava milho e restos de comida para as galinhas. ‘Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento’, apertou os olhos, olhando para a cova diante de seus pés, ‘aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente para trabalho: - moço, o senhor me dá morada?’ De pronto seu olho se ergueu para meu irmão: ‘trabalhe mais e pense menos. Seu olho não deve crescer para o que não é seu’, Apoiou a enxada em pé no solo, segurando a ponta do seu cabo com um dos braços. ‘O documento da terra não vai lhe dar mais milho, nem feijão. Não vai botar comida na nossa mesa.’ Retirou papel e fumo e começou a fazer um cigarro. (...) para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra é nada.’”


Com o passar dos anos, com o surgimento das novas gerações, surge a contestação, a revolta, e o início da luta por direitos. Bibiana casa-se com Severo e juntos abandonam a fazenda, quando retornam, anos depois, Bibiana está formada e passa a dar aulas na fazenda. Severo tornar-se a voz dissonante, o homem que com o pouco que aprendeu ao sair da caverna de Platão, busca incitar os moradores a lutar pelos seus direitos.



E o fantástico? Onde entra a tradição do realismo mágico em toda esta história? Como disse anteriormente, o autor encontrou uma forma e um tom, em que o equilíbrio prevalece. Para alguns leitores mais afoitos, inclusive, este elemento fantástico pode passar despercebido. O romance é dividido em três partes: a primeira parte é narrada por Bibiana e é pontuada pela tragédia que marca as irmãs em sua infância e determina o diapasão de sua ligação durante toda a vida. Brincando com a faca da avó, Donana, escondida em sua mala - faca esta que por si só guarda uma terrível história pretérita -, uma das irmãs decepa a própria língua. Vieira Junior escreve um dos capítulos mais bem acabados e estruturados de nossa literatura contemporânea. São quase oitenta páginas mostrando como uma das irmãs tornou-se a voz da outra -: “A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar.” -, e introduzindo os personagens, suas histórias e sua realidade. O autor nos esconde, até as últimas linhas desta primeira parte, de uma forma extremamente lúdica e elaborada em sua técnica narrativa, qual das duas irmãs havia perdido a língua. E a maneira como ele nos revela é extremamente poética, literária e dolorida, pois Bibiana vai deixar a fazenda em companhia de Severo, para tentar uma vida melhor alhures:


“Dentre as coisas que levava, e talvez a que mais me machucava, era a minha língua. Era a língua ferida que havia expressado em sons durante os últimos anos as palavras que Belonísia evitava dizer por vergonha dos ruídos estranhos que haviam substituído sua voz. Era a língua que a havia retirado de certa forma do mutismo que se impôs com o medo da rejeição e da zombaria das outras crianças. E que por inúmeras vezes a havia libertado da prisão que pode ser o silêncio.”


A segunda parte do romance nos é narrada por Belonísia, e mostra seu casamento, sua emancipação e crescimento como indivíduo e como mulher. Transformações ocorrem na fazenda: Zeca Chapéu Grande morre, um novo proprietário compra Água Negra, os moradores começam a lutar por seus direitos, mas a violência dos velhos coronéis ainda dita a lei, e uma nova tragédia se abate sobre a família: o assassinato de Severo.



Enfim a terceira e última parte do livro e o seu elemento fantástico, que se liga fortemente com a crença religiosa dos personagens da história. Temos agora um terceiro narrador, Santa Rita Pescadeira, uma entidade do Candomblé:


“Meu cavalo morreu e não tenho mais montaria para caminhar como devo, da forma que um encantado deve se apresentar entre os homens, como deve aparecer para este mundo. Desde então, passei a vagar sem rumo, arrodeando aqui, arrodeando acolá, procurando um corpo que pudesse me acolher. Meu cavalo era uma mulher chamada Miúda, mas quando me apossava de sua carne seu nome era Rita Pescadeira. Foi nela que cavalguei por um tempo, não conto o tempo, mas montei o corpo de Miúda, solitária. Sou muito mais antiga que os cem anos de Miúda. Antes dela, me abriguei em muitos corpos, desde que a gente adentrou matas e rios, adentrou serras e lagoas, desde que a cobiça cavou buracos profundos e o povo se embrenhou no chão como tatus, buscando a pedra brilhante.”


Com esse artifício, além de inserir um elemento fantástico na obra, o autor se permite, na última parte do livro, um narrador onisciente, que tudo vê e tudo sabe, inclusive das velhas histórias dos personagens. Neste derradeiro capítulo, percebemos ainda mais o amadurecimento político e ideológico da comunidade, assim como o arraigamento do ódio e da amargura em Bibiana e Belonísia, até que enfim, uma nova tragédia se abate sobre Água Negra, mas agora como forma de redenção, como vingança; e mais uma vez Vieira Junior nos esconde com maestria o autor do ato, na verdade, como o leitor descobrirá nas páginas finais do livro, os três autores do ato de liberdade simbólica ocorrido através da morte da onça que aterrorizava as vidas dos moradores de Água Negra.


Durante a agradável leitura do romance, nos deleitamos com o estilo do autor, que nos remete a alguns dos maiores escritores do nosso país, entretanto sentimos que o tom de crítica social poderia ser, não amenizado, mas talvez pudesse soar menos repetitivo, pois essa repetição faz com que a obra perigosamente roce, mas muito levemente, em um registro quase panfletário. Felizmente o talento de Vieira Junior e a segurança e controle que ele possui da narrativa do início ao fim, impede, para a nossa sorte, que isso aconteça. Só lamentamos que este tipo de literatura de denúncia ainda seja necessária em nosso país, expondo uma realidade que até os dias de hoje assombram nossos trabalhadores rurais. Contudo, como leitores e cidadãos, agradecemos que ainda haja autores preocupados, socialmente engajados, e principalmente talentosos, para transformar estes gritos de revolta em grande literatura.



(A edição usada como base para este ensaio foi a décima terceira reimpressão da Editora Todavia, lançada em 2021)

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