TEMPO DE MIGRAR PARA O NORTE
Tayeb Salih
A terceira margem
Os dois personagens centrais do romance, o narrador e Mustafa Said, são sudaneses - assim como seu autor - que possuem um diferencial em relação a seus conterrâneos da época (o livro foi escrito em 1966); tiveram o privilégio de estudar fora do país, de completarem sua formação em Londres, capital do país colonizador. O narrador faz parte da primeira geração pós-independência (1956) a ter a oportunidade de estudar fora do Sudão, e por isso mesmo é tratado em sua aldeia como uma espécie de estrela de cinema a cavalgar seu diploma de Doutorado. Já Mustafa, por uma série de acasos fortuitos (desde ser descoberto na rua por um agente do governo que procurava crianças para levar a uma escola, até ser “adotado” por um casal de ingleses do Cairo), e uma inteligência rara, foi uma exceção na década de trinta, ao chegar a Inglaterra e se tornar um economista de sucesso. Seu nome era citado em rodas no Sudão como uma espécie de lenda ou mito.
A história começa com o narrador voltando para sua aldeia depois de sete anos de ausência. Na festa de recepção um rosto estranho chama sua atenção: “É Mustafa”, diz seu avô, um forasteiro que havia chegado a aldeia há cinco anos, comprado um terreno, casado e se estabelecido. De forma surpreendente o narrador é procurado por Mustafa dias depois e é tomado como confidente deste, que lhe conta sua história.
O romance se nos apresenta de forma fragmentada, onde o leitor precisa juntar as peças (as últimas são fornecidas nas páginas finais do livro) para entender a vida e a tragédia pessoal de Mustafa. Como pano de fundo, temos a realidade corrupta do governo sudanês e a relação ambígua dos dois personagens com a dualidade cultural e identitária a qual são submetidos: ocidente/oriente. Na Inglaterra, Mustafa se torna um sedutor que faz uso de um exotismo clichê (com incensos, decoração oriental, livros em árabe espalhados pela casa, cheiro de sândalo nos cômodos, etc) para seduzir as mulheres. Esse seu lado já começa a aflorar com Mrs Robinson, sua tutora inglesa, quando ele ainda tinha doze anos. O autor deixa bem claro que esse afã sedutor de Mustafa é fruto de um velado desejo de vingança. É o oprimido se tornando opressor. Se seu povo foi escravizado e dominado pelo ocidental, agora as mulheres inglesas sentirão o poder de seu povo, de sua raça. O personagem se descreve como um homem frio e calculista. A consequência deste seu processo desenfreado de sedução/vingança, é que durante sua vida na Inglaterra, três mulheres tiram a própria vida ao serem abandonadas pelo Don Juan de ébano criado por Salih. Mas como todo caçador tem o seu dia de caça, a derrocada, procurada e necessária para a redenção de Mustafa, começa quando ele conhece Jean Morris, com quem se casa. Após uma relação doentia de amor, ódio e traições, ele mata a esposa, em uma cena que remete a um ritual de magia negra, no qual os dois deveriam morrer; mas Mustafa sobrevive e é condenado pelo seu crime a sete anos de prisão. Como já disse, somente nos capítulos finais do livro o leitor consegue juntar as peças do quebra cabeça e ter uma visão parcial da vida de Mustafa. Digo parcial por que a ambiguidade faz parte da estrutura da narrativa de Tayeb Salih nesta obra, assim como da identidade de um povo colonizado que vive entre dois mundos, duas culturas.
Tayeb Salih
Quando sai da cadeia Mustafa resolve voltar para o Sudão e viver recluso em uma aldeia, onde se casa e se torna um homem do campo. Sua redenção é tornar-se um sudanês do interior, sem luxos e sem contato com a cultura ocidental, como dá a entender quando diz ao narrador que “...aqui nós não precisamos de poesia. Se tivesse estudado agronomia, engenharia ou medicina teria sido melhor (...) somos agricultores, só pensamos em nosso interesse, mas o estudo, seja qual for, é necessário para o progresso da nação.”
Antes do primeiro terço do livro Mustafa desaparece em uma enchente, seu sumiço induz o leitor e o narrador a pensar em suicídio (ou quem sabe uma fuga), pois ele deixa uma carta-testamento para o narrador, tornando-o tutor de seus filhos e responsável por seu espólio. O leitor perceberá durante o desenvolver da história, que ao tentar compreender Mustafa e seguir seus passos, o narrador está na realidade desvendando a si mesmo; um homem que se sente estrangeiro em sua aldeia de nascimento, mas também é um estrangeiro no ocidente que o educou. O tema que permeia todo o livro é a busca de uma identidade por parte de Mustafa (na Inglaterra sua biblioteca só possuía livros em árabe, em sua casa na aldeia só havia livros em inglês), do narrador, e do próprio povo sudanês. Como certa vez disse o próprio autor: “Egito é Egito, Iraque é Iraque, Líbano é Libano… mas e o Sudão? Esse nome nada significa para nós.” É bom salientar que Sudão vem do árabe Sudán, que significa “negros.” A conclusão do romance se dá com a colocação de mais uma peça no quebra cabeça da vida de Mustafa: a abertura de um quarto que ele mantinha fechado até para a própria esposa, em sua casa na aldeia. A chave deste quarto também é deixada para o narrador junto com a carta-testamento. Ao abrir o quarto o narrador descobre as peças restantes para que ele pudesse montar e contar a história de Mustafa, registrar seu legado, e quem sabe assumir para si a mesma relação de amor e ódio que o outro nutria pelo colonizador. Percebemos que há um planejamento, ou pelo menos um forte desejo por parte de Mustafa, para que o narrador herde não só o seu legado, mas sua vida, casando-se com sua mulher, criando seus filhos e contando sua história:
“Virei a chave na porta; abriu sem dificuldades. Fui recebido pela umidade do interior e por um cheiro que parecia uma recordação antiga. Conheço esse cheiro. É de sândalo e de incenso. Apalpei as paredes com a ponta dos dedos. Esbarrei no vidro de uma janela. Abri o vidro e a veneziana de madeira. Abri outra e uma terceira, mas de fora nada entrou, além de mais escuridão. Acendi um fósforo. A luz nos meus olhos teve o mesmo efeito de uma explosão. Um rosto carrancudo de lábios cerrados apareceu; um rosto conhecido, porém não mais reconhecido. Com raiva, caminhei em sua direção. Era o meu rival, Mustafa Said. Abaixo do rosto formou-se um pescoço, depois dois ombros, um peito, tronco e membros: estava parado diante de mim, cara a cara. Não era Mustafa Said. Era minha imagem refletida no espelho.”
No capítulo final, em uma cena simbólica, o narrador pula no nilo, nu, e tenta atravessá-lo de margem a margem, que representam aqui o ocidente e o oriente. No meio do caminho ele perde suas forças e começa a se afogar, à deriva entre as duas margens, entre os dois mundos. Mas o personagem/narrador opta pela vida: “Se não sou capaz de perdoar, tentarei pelo menos esquecer. Viverei com força e argúcia.” Então começa a se debater e faz o que muitos homens, povos inteiros nessa situação de busca identitária, ao se encontrar à deriva como um povo, como uma nação, fazem, e quase nunca percebemos. Grita por socorro! Socorro!
(A edição usada como base para este texto foi a lançada pela TAG, através da editora Planeta, em 2018, com tradução e notas de Safa Abou-Chahla Jubran)
Olá Cássio! Realmente o título, que peguei emprestado de um conto de Guimarães Rosa, "A terceira margem do rio", ajuda a caracterizar este romance de Tayeb Salih. O lugar do emigrante, do colonizado, daqueles que vivem entre dois mundos, duas culturas, é um lugar não delimitado, etéreo, inseguro e até mesmo irreal, é uma terceira margem.
tem outro detalhe, tão sutil que pode passar despercebido, o título do texto: A terceira margem. Essa imagem sensacional que se coloca ao um centro de tudo que se possa imaginar. Essa fronteira representa, por vezes, o ponto equidistante onde tudo que ficou para trás é exatamente do mesmo tamanho do que virá. Mas também pode representar o limite entre você e toda pessoa que, ao se relacionar, você permite que seja uma metade inteira que te complementa.
A terceira margem é uma fronteira, mas que não limita, une.
Exatamente Cássio e Max, e este livro trata de forma bem interessante essa questão da dualidade e da busca identitária e um entendimento, não só do indivíduo, mas da própria nação colonizada. Obrigado Márcia, o objetivo é esse mesmo... instigar a leitura.
HIstória interessante. Eterna busca humana pelo entendimento....
Ahhhh.... Curti muito essa história! Super valeu a dica! Como sempre, instigante!