H. Bustos Domecq
SEIS PROBLEMAS PARA DOM ISIDRO PARODI E DUAS FANTASIAS MEMORÁVEIS
H. Bustos Domecq
O TERCEIRO HOMEM
Um livro de ficção! Tudo neste livro é ficção, é inventado, saiu da cabeça de seu autor, ou melhor dizendo, cabeças. H. Bustos Domecq, o autor do livro, só existiu na imaginação nascida de duas mentes fantasiosas e criativas. Por volta de 1932, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares são apresentados por uma amiga em comum, Victoria Ocampo. A partir daí nasce uma amizade que cruzou décadas, só “acabando” com a morte do primeiro, que era 15 anos mais velho que seu companheiro. Borges e Bioy cultivaram uma amizade fraterna, alicerçada pelo profundo amor dos dois em relação à literatura.. E nada mais, e menos natural (contradição que é coerente nesses dois mestres do realismo fantástico), do que surgir entre os dois a colaboração literária. Contudo, eles levaram essa colaboração ao paroxismo, criando entre dezembro de 1941 e outubro de 1942, a quatro mãos e duas cabeças (como se fossem um dos seres imaginários criado por Borges e Margarita Guerrero em: O livro dos seres imaginários, lançado na década de 60 e também escrito a quatro mãos), seis contos policialescos (mais a frente o leitor entenderá por que não devemos usar o termo conto policial aqui), e quatro anos depois voltarem a unir mãos, cabeças e imaginações para novamente invocar o autor-monstro-híbrido para criar mais dois contos, porém não policialescos: “Nós nos pusemos a trabalhar, entusiasmamo-nos, e quase em seguida fez sua aparição um terceiro homem, que passou a dominar a situação; seu nome era Honório Bustos Domecq. Com o passar do tempo, este personagem terminou por não parecer em nada conosco e depois por nos dominar com mão firme, impondo-nos seu próprio estilo literário.”
Honório Bustos Domecq, nasceu na localidade de Pujato, na província de Santa Fé, em 1893, segundo informações da educadora Senhorita Adelma Bodóglio. Como alertamos no início deste texto, sobre ser tudo ficção neste livro, Adelma Bodóglio também é criação de Borges e Bioy, assim como, claro, os dados biográficos de seu personagem inventado. Bustos era um bisavô de Borges, e Domecq, um bisavô de Casares. Daí eles tiraram os sobrenomes de seu personagem-autor. O que chama muito a atenção do leitor conhecedor das obras dos escritores argentinos ao ler os seis contos protagonizados por Dom Izidro, e também as duas fantasias, escritas quatro anos depois, é que Bustos Domecq não é um “ser” bipolar, que possui duas metades que se completam; uma de Bioy, outra de Borges (Gervásio Montenegro, que escreveu o prefácio da primeira edição argentina, chama o autor, Bustos Domecq, de bicho-feio. Ah, só mais um detalhe, Gervásio Montenegro, membro da academia argentina de letras, também é fruto da imaginação de Borges e Bioy). Como escreve Michel Lafon, professor de literatura argentina na Universidade Stendhal, em Grenoble, França (este sim, é um crítico real), e prefaciador da edição brasileira da Editora Globo: “Esta voz não é a soma de duas vozes (Bustos Domecq não é “Biorges”, esta superposição vagamente obscena de dois retratos fotográficos seus), mas sua transcendência, sua transmutação, nascida de um misterioso entre dois, que segundo Bioy, ‘só existe quando estamos os dois conversando.’” Para estes leitores mais afeitos às obras dos dois autores, é interessante procurar a “presença” de Borges nos textos, ou em que trechos pesou mais a mão de Bioy Casares; mas advirto o leitor que essa busca é infrutífera, pois jamais saberemos. E ouso dizer que não me admiraria se alguém me contasse que conseguiu vislumbrar, através de uma janela aberta em Buenos Aires, um ser híbrido, um monstrengo de quatro mãos, duas cabeças, sentado à luz de um abajur e debruçado sobre uma escrivaninha, onde deveria estar sentado o senhor Jorge Luis Borges ou o senhor Adolfo Bioy Casares. Ademais, não podemos descartar, devido ao espírito travesso dos dois autores, que um escrevesse um trecho imitando o estilo do outro e vice-versa, o que forneceria ao texto um hibridismo ainda mais insondável. Segundo palavras do próprio Bioy Casares: “Escrevíamos habitualmente, à noite. Conversávamos livremente sobre a ideia que tínhamos de um tema até que ia se formando, quase sem que propuséssemos, um projeto comum (...) Ocasionalmente Borges me dizia: ‘Já chega, são brincadeiras demais.’”
Entretanto é impossível não vislumbrarmos temas, recortes e ideias que seriam usados pelos autores em obras posteriores, individuais, dos dois autores. Por exemplo, em “A vítima de Tadeu Limardo”, um dos seis problemas de Dom Izidro Parodi, temos um trecho que remete à atmosfera onírica e carnavalesca de O sonho dos heróis, de Adolfo Bioy Casares, publicado anos depois, em 1954:
“Imagine a cena: eu, com o focinho peludo, suava em bicas, e volta e meia me surpreendia a tentação de tirar a cabeça de urso, aproveitando alguns lugares que são um breu danado, que se o Conselho Deliberante os vir vai ficar com a cara no chão (...) Os meus pulmões já se alegravam com o ar benéfico da praça, que fervia de rotisseries e de churrascos, quando perdi os sentidos, diante de um ancião que tinha se disfarçado de palhaço, e que faz trinta e oito anos, agiu com sangue frio: com um puxão me arrancou a cabeça de urso e só não levou minhas orelhas porque estava grudadas.”
Ou no conto “A testemunha”, de Fantasias memoráveis, onde somos levados a um porão escuro e à visão de algo fantástico, mágico e absurdo ao mesmo tempo, como em “O Aleph”, escrito e publicado por Borges três anos depois:
“Foi então que vislumbrei, sentada numa cadeira de balanço, de vime, que ia e vinha docemente, a causa do temor da menina e, por fim, de sua morte. Já vão dizer que sou insensível, mas o fato é que tive que sorrir quando vi a simplicidade que me havia trazido essa desventura. Logo de cara, dê-se um empurrão e arranque como um voo. Veja, a um só tempo, num abrir e fechar de olhos, os três combinados que, numa espécie de tranquilo entrevero, animavam a cadeira: como cientificamente os três estavam num só lugar, sem atrás, nem adiante, nem embaixo nem em cima, prejudicavam um pouco a vista, especialmente na primeira olhada. Campeava o pai, que pela abundante barba conheci, e, ao mesmo tempo, era o filho, com os estigmas, e o Espírito Santo, em forma de pomba, do tamanho de um cristão.”
Sendo assim, não é um absurdo inferir e levantar a possibilidade, de que as obras individuais de Borges e Casares, que vieram após os contos escritos por H. Bustos Domecq, tenham sofrido a influência deste. Em um lance digno do universo fantástico criado pelos dois autores, a criação ganha uma identidade, e o “terceiro homem” influencia a obra de seus criadores, como em “Kafka e seus precursores”, conto-ensaio de Borges, há uma perversão do tempo e da anterioridade, e aquilo que deveria ser apenas um codinome, saído da imaginação dos dois autores, ganha “personalidade” literária ao ponto de influenciar suas criações posteriores.
Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares
Sobre os contos do livro, vamos nos abster de analisar mais detalhadamente os chamados “contos bíblicos”, de Duas fantasias memoráveis, que completam os oito contos escritos (e conhecidos) por H.Bustos Domecq, em sua curta carreira literária. São Os seis problemas para Dom Isidro Parodi que merecem mais nossa atenção. Dom Isidro é um ex-cabeleireiro da rua México, que se encontra preso, na cela 273. É de dentro desta cela que o personagem resolve todos os seus problemas. Como nos diz o já citado Gervásio Montenegro, em seu prefácio: “A imobilidade de Parodi é todo um símbolo intelectual e representa o mais rotundo dos destemidos à vã e febril agitação norte americana* (*o autor alude aqui certamente ao romance Noir americano de Raymond Chandler e Dashiell Hammet), que algum espírito implacável, mas certeiro, comparará, talvez, com o célebre Ésquilo da fábula…”
Devido a essa situação sui-generis do nosso detetive, ele não irá dispor das condições de colher pistas, entrevistar os suspeitos, analisar o local do crime, etc… Ele conta somente com o depoimento, na verdade uma narração individual, um ponto de vista (em alguns contos ele chega a contar com mais de um ponto de vista) do personagem que o procura na cela. Após ouvir a narrativa dos fatos, Dom Izidro fornece a solução do problema na visita final do personagem que lhe expôs o problema no início do conto.
Entretanto é exatamente na exposição do problema, na narração dos fatos, do crime que deveria ser desvendado, que temos a principal qualidade e, paradoxalmente, o principal defeito, se é que poderíamos falar assim, dos contos que tem Do Izidro como personagem. Devido à estrutura criada pelo autor, com seu detetive preso, e as regras implícitas que uma história policial deve seguir (ou seja, o leitor deve ter acesso às mesmas pistas e informações que o detetive), Bustos Domecq encontrou uma engenhosa solução para estruturar sua obra dentro dos parâmetros das narrativas policiais: quando o personagem que tem a função de narrar para Dom Izidro os fatos do caso, se encontra pela primeira vez (e nas outras vezes, quando isso se faz necessário em alguns contos) na cela do detetive-prisioneiro para expor a este os acontecimentos, o autor utiliza-se de um vocabulário extremamente erudito, de uma torrente verborrágica alucinante e tortuosa, onde encontramos crítica social, citações mitológicas, literárias, científicas, etc…, tudo isso enredado em um emaranhado léxico que joga o leitor em um labirinto às vezes irritante, tamanha a complexidade de alguns trechos. Este artifício é utilizado exatamente para confundir e baratinar o leitor; pois nós, os leitores, estamos tendo acesso à mesma história que Dom Isidro, ao mesmo texto que ele está escutando, e é daí, e somente daí que Dom Izidro deve tirar suas deduções antes do leitor e nos surpreender com elas; ao ponto de pensarmos: ora, ora, estava na minha frente, eu li isso, como não tive a mesma dedução? Este trecho do conto "As previsões de Sangiácomo", é um bom exemplo do que acabamos de expor:
“O senhor disponha de todos meus recursos expositivos, de minha cornucópia verbal. Num abrir e fechar de olhos farei um esboço, em grandes traços, a sinopse do caso. Não ocultarei à sua perspicácia, cordialíssimo Parodi, que a morte da Pumita havia afetado - melhor, desnorteado - Ricardo. Dona Maria Ruiz Villalba de Anglada não está batendo bem, de certo, ao reafirmar, com esse invejoso gracejo, que ‘os pangarés de pólo são o horizonte de Ricardo’; o senhor imagine nosso pasmo quando soubemos que de tão abatido e avinagrado havia vendido a não sei que negociante de City Bell essas cavalarias supernas, que ontem eram as meninas de seus olhos e que hoje olhava carrancudo, sem afeição. Já não estava de grox nem de regolax. Nem sequer lhe desatordoou a publicação de sua crônica novelesca “A espada do meio dia”, cujo manuscrito adubei eu mesmo para as prensas e nas quais o senhor, que é todo um veterano nessas lides, não terá deixado de advertir, e aplaudir, mais de uma contrafirma de meu estilo personalíssimo, tão grande como ovo de avestruz.”
Este artifício utilizado por H. Bustos Domecq é necessário, diria mais, é imprescindível, dado a estrutura dos contos, onde nosso detetive encontra-se detido em uma cela de cadeia. É no emaranhado dessa verborragia, algumas vezes praticamente ininteligível, que Borges e Bioy (sim leitor, não estou enlouquecendo, a alternância de creditar o livro ora a Bustos Domecq, ora a Jorge Luis Borges e Bioy Casares, é proposital e coerente com a proposta dos autores e com tudo o que dissemos na primeira parte deste ensaio) aproveitam para fazer suas críticas sociais, seus deboches, suas brincadeiras, seus sarcasmos (prestem atenção na quantidade exagerada de palavras em francês que o personagem Gervásio Montenegro utiliza em suas frases no conto: As noites de Goliadkin. O mesmo Gervásio Montenegro aliás, que é convidado por Bustos Domecq e alçado a personagem real por Casares e Borges para escrever o prefácio de Seis problemas para Dom Isidro. Ou seja, Gervásio Montenegro é um personagem criado por Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares para apresentar o livro de Bustos Domecq, e também um personagem criado por este em um de seus contos. Como nos esclarece tão bem o já citado Michel Lafon:
“Estes discursos delirantes, misturados e ensurdecedores, com seus preconceitos de classe, suas estúpidas pretensões intelectuais, seus racismos obscenos, constróem uma desapiedada sátira social. Mas desempenham também um papel-chave no relato, já que dissimulam todos os indícios necessários para a resolução do caso. Como uma selva onde o detetive sabe distinguir as figuras da razão, as formas de uma ordem secreta, a chave do enigma. Um dos maiores feitos de Bustos Domecq é haver entendido a utilidade narrativa deste dispositivo, em que os períodos de delírio são, na realidade, tão decisivos - tão necessários - como os momentos de serenidade e reflexão.”
Não poderíamos encerrar este texto sem uma pequena, vamos chamar assim, advertência. Para aqueles leitores não familiarizados com os estilos e as obras de Jorge Luis Borges e Bioy Casares, e que abrem o livro buscando clássicos contos policiais, temos de avisar que provavelmente irão se decepcionar. Estes contos, apesar de sua grande genialidade estrutural, e de Dom Izidro nos brindar com deduções que não deixam nada a dever a um Sherlock Holmes, a um Hercule Poirot ou a um Padre Brown (inclusive, no já citado conto: “As noites de Goliadkin”, há um personagem chamado Padre Brown, pois não podemos nos esquecer da grande admiração que Borges cultivava por G.K. Chesterton, criador dos padre-detetive.) são, ao fim e ao cabo, brincadeiras dos dois autores argentinos, uma forma de debochar e ao mesmo tempo homenagear o gênero tão admirado por ambos. E isso sem falar na logorréia que muitas vezes irrita até mesmo o leitor mais acostumado a textos complexos. Por outro lado, aqueles leitores admiradores das obras de Borges e Bioy, terão aqui os dois autores no auge de seu período criativo e brincando, de forma um tanto despretensiosa, com o fazer literário.
(A edição usada como base para este ensaio, foi a primeira edição de 2008, da Editora Globo, com tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro e prefácio de Michel Lafon. Há outras edições disponíveis nas livrarias e sebos, das editoras: Planeta, Dante e Biblioteca Azul.)
Sou fã de Borges e já conhecia Bioy Casares. Mas nunca li nada do terceiro homem, Bustos Domecq. Ou talvez tenha lido - quem sabe? Num mundo cheio de labirintos, seres imaginários e histórias fantásticas, tudo pode acontecer e/ou já ter acontecido. Parabéns, Nelson!
Nossa! Muito complexo (para mim, que não sou uma leitora voraz), este livro e está crítica. Parabéns por tanto conhecimento!