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Foto do escritorNelson Ricardo Guedes dos Reis

ORAÇÃO PARA DESAPARECER




ORAÇÃO PARA DESAPARECER

Socorro Acioli

 

    

Uma pluralidade de referências históricas, culturais e étnicas compõem esse pequeno primor literário (o livro tem menos de 200 páginas). Em Oração para desaparecer, da cearense Socorro Acioli, vemos um exemplo claro de literatura brasileira, não de forma pura, mas em estado híbrido. Nesta obra temos um contato íntimo e profundo, fruto de exaustivas pesquisas: com nossa cultura originária de matriz autóctone, aqui representada pelo povo Tremembé, com suas crenças e tradições centenárias; com a aridez da terra e as vicissitudes climáticas; com as raízes nordestinas do nosso povo brasileiro; com a cultura portuguesa; com seu falar próprio de nossa língua comum; com sua culinária e geografia diversificada e sua cultura tão distante e ao mesmo tempo tão próxima de nós, ligadas pela ponte da língua portuguesa que atravessa o oceano e nos aproxima, em uma história que já passa de 500 anos.


Como nos conta Acioli em entrevistas, a história do livro surgiu de um episódio real, cujo a autora foi desvendando aos poucos, através de coincidências e pesquisas. Todo bom jogador precisa de sorte, um bom escritor também. No final do século XIX, uma igreja construída no distrito de Almofala, no Ceará, território dos povos originários da etnia Tremembé, foi tomada por um banco de areia e soterrada. Antes de seu desaparecimento, a arquidiocese resolveu remover as imagens que se encontravam na igreja, o que gerou a revolta da população. Uma mulher, Joana Camelo, chegou a se apoderar de uma das estátuas, mas foi capturada pelo próprio padre antes de sua fuga. Quarenta e cinco anos depois, com a mudança dos ventos, o banco de areia se moveu novamente fazendo com que a igreja ressurgisse, destelhada, mas com sua alvenaria intacta. Na época vários meios de comunicação noticiaram o fato e resgataram a história, gerando inclusive uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, que segundo Acioli, foi a chave para o desenvolvimento de seu livro. A autora nos relata que contavam na cidade, visitada várias vezes por ela durante o processo de pesquisa para o livro, que o soterramento da igreja foi um castigo dos “encantados”, espíritos de tremembés ancestrais, que puniram a cidade pelo fato dos índios terem cedido uma imagem de ouro de Nossa Senhora da Conceição, encontrada por três indígenas da tribo, á beira do rio Aracati-Mirim, em troca da construção da igreja. E como cereja do bolo, um velho pescador da região disse para Acioli que as coisas deixadas no alto da duna que cobria a igreja, desapareciam e reapareciam em Portugal.

    



Após reunir todos esses elementos, a autora então embebedou-se de nossa tradição literária latina, onde a literatura fantástica há muito tempo permeia a criação literária, desde Cervantes, passando por Machado de Assis, Borges, Garcia Marques, Murilo Rubião, Jorge Amado e José Saramago, além de outros. E tomada deste universo fantástico, Acioli desenvolve sua narrativa partindo do ponto em que uma mulher é retirada da terra, nua, careca e sem memória, em um momento temporal não explicitado na obra, no município de Almofala, em Portugal:

 

“Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes. Alguém me enterrou. Bichos alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada, fedida. Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me desfazendo até virar pó. Ninguém sabe o que fazer na hora da morte.

Quando eu já suplicava pelo fim, o buraco me apertou como uma mão gigante de terra, envolveu meu corpo inteiro e começou a me expulsar. Os olhos lacrados, a hora do parto, a boa hora de Nossa Senhora, as palavras se repetiam no pensamento tomado de desespero. (...)

(...) Dois pares de braços surgiram cavando, falando, abrindo espaço para a luz. Buscavam por mim.”

 

     A partir deste momento, nos é mostrado, através da narrativa na primeira pessoa, toda a angústia de um ser que perde seu passado; pois Aparecida –este é o nome que lhe dão seus salvadores – não se recorda de nada relacionado à sua vida pregressa. Ela nos narra, de forma aflitiva, seus sonhos fragmentados e suas vãs tentativas de se lembrar de sua história e de tentar entender o que está acontecendo, pois dizem seus salvadores que ela é uma ressurecta, e que eles a aguardavam.

    

As primeiras páginas do livro são um tanto confusas para o leitor, mas isso é proposital, pois sendo o livro narrado na primeira pessoa, o leitor vai descobrindo e entendo o que aconteceu junto com a protagonista nesta primeira parte da obra. O que é ser uma ressurecta? Por que aquela família é “condenada” a salvar mortos-vivos por gerações? Por que ela não se lembra de nada do seu passado? E além dessas, outras questões, as que mais a angustiam, as questões fulcrais para o desenrolar da obra: é possível viver sem um passado? É possível criar, ou comprar um passado? É possível construir um futuro a partir de um presente órfão de passado, de um presente que começa a se fazer bom e promissor (a personagem conhece Jorge, que de uma certa forma esperava a vinda da brasileira - a última ressurecta salva por aquela família - desde criança, quando escutou este vaticínio em uma conversa de adultos), ao lado do sobrinho moçambicano das três mulheres que cuidam dela na pequena cidade de Aboim da Nôbrega, sem ter um passado?  E se ela se lembrar um dia de sua antiga vida? Qual terá sido sua história? Jorge a aceitaria, independente do seu passado? Ela mesmo aceitaria esse seu passado?

    

O livro é dividido em três partes. Na primeira, após a descrição dos acontecimentos dos primeiros meses de adaptação de Aparecida em sua nova realidade, descobrimos que a protagonista está contando sua história para uma pessoa, que começa a lhe fazer perguntas e inserir pequenos comentários a partir do capítulo 3. Essa pessoa, o leitor descobrirá no decorrer da leitura, é Félix Ventura. Aqui abrimos um parêntese para um curioso e raro caso de intertextualidade, através do empréstimo de um personagem. Félix Ventura é um personagem criado pelo escritor angolano Eduardo Agualusa, para o seu romance, O vendedor de passados. Agualusa - que também já se apropriou de um personagem, Fradique Mendes, em seu livro Nação crioula: a correspondência secreta de Fradique Mendes -, procurado por Socorro Acioli, cede seu personagem por empréstimo. Félix Ventura é na verdade um criador de passados, um falsificador de documentos, mas que não se atém apenas a criar uma nova identidade para quem o procura, mas sim, após várias entrevistas, criar um novo passado para seu cliente. No caso de Aparecida, ele tem de realmente inventar um passado para ela, baseado em seus fragmentos de sonhos e sua realidade presente. Na verdade, ele vai criar para ela o único passado que a personagem acredita que realmente terá (ou teve), e que precisa para construir seu futuro ao lado de Jorge.

    

A primeira parte termina com aquilo que, como leitor, temíamos, mas aguardávamos ansiosamente. Aparecida recupera a memória:


“A vida é feita de palavras, elas explicam e fazem nascer e morrer. Se ninguém pronuncia um nome este ser está morto, mesmo que respire e leve um coração batendo no peito. Estar vivo é ser palavra na boca de alguém. Não lembrar delas me condenou ao abismo, não saber os nomes das pessoas, do meu lugar, a narrativa da minha vida, tudo o que somos é história e história se conta com palavras. Por isso bastou um bilhete. Lembrei-me da missa: ‘Mas dizei uma palavra e serei salvo’. Fui salva por apenas duas, o nome da cidade de onde vim e o meu nome.”

 

    

A segunda parte segue a estrutura da primeira, e aqui temos um homem, Miguel, contando sua história para um outro, mais jovem que o interroga - que rapidamente descobrimos ser Jorge -, na cidade de Almofala, no Ceará. A partir deste ponto conhecemos a história de Joana Camelo (Aparecida), antes de seu desaparecimento: sua personalidade infantil, alegre, trigueira e sedutora. Também nos deparamos com a história da igreja soterrada, que serviu de mote para Acioli criar Oração Para Desaparecer. A partir deste ponto do livro, a importância e a penetração da cultura Tremembé aumenta gradativamente na narrativa até culminar na terceira parte.

    



O leitor agora presencia o plasmar de Aparecida e Joana em uma só pessoa. A ressurecta Aparecida agrega ao seu presente o passado conturbado e místico de Joana Camelo. As duas juntas e unas projetam um futuro ao lado de Jorge; mas antes é necessário o resgate de sua brasilidade:


“Agora eu sei o que é ser essa mulher brasileira, aquela pergunta que tantas vezes me fiz. A igreja de Almofala, onde fui deixada por minha mãe e de onde renasci para a vida nova, é o meu Brasil. Eu o vejo ali, nos mortos que rondam as paredes brancas, nos cantos das três raças que eu escuto, na Encantaria, no nosso Torém no adro, Nossa Senhora da Conceição é a Oxum africana, é a Labareda Tremembé. E eu, Joana, sinto orgulho da força da alma brasileira que abrigo no meu corpo.”

 

     Socorro Acioli cria uma obra nos moldes do realismo fantástico, partindo de uma história real repleta de brasilidades, recheada de elementos identitários de nossa cultura primitiva e originária, e faz isso através de uma linguagem segura e harmoniosa, que soa bem aos nossos ouvidos, e através de uma estrutura narrativa muito bem montada. Mesmo que a obra às vezes siga caminhos que não agradam totalmente os leitores, como por exemplo não ser mostrado o primeiro impacto sofrido por Miguel, com mais de oitenta anos, ao saber que seu grande amor está vivo e com o frescor dos vinte e nove anos (o tempo para Joana, na “travessia”, passou de uma maneira diferente: 7 para ela, 49 para os que ficaram na Almofala do Ceará); isso, entretanto, não arranha em nada a grandiosidade desta obra literária, pelo contrário, a referenda, pois os caminhos e possibilidades para aqueles autores que têm a coragem de escolher os tortuosos meandros da literatura mágica para se expressarem, são muito mais diversos, complexos e numerosos, e nem sempre o autor se envereda por onde queremos, ou quando o faz não o realiza da forma que imaginamos.. Isso por que em um romance como Oração Para Desaparecer, a imaginação não está a serviço da história, mas é esta que lhe serve de base para desenvolver o fantástico e que lhe dá a liberdade criativa da literatura.



 (Oração para desaparecer de Socorro Acioli foi lançado em 2023 pela Editora Companhia da Letras. Há também uma edição em capa dura lançada pela TAG, em convênio com a Companhia da Letras, especialmente para seus assinantes.)

 

 

 

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1 Comment


Ana Júlia de Oliveira
Ana Júlia de Oliveira
Jul 16, 2024

qual é a entrevista em que a autora fala sobre o soterramento ser uma punição dos encantados?

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