O SONHO DOS HERÓIS
Bioy Casares
Nesta obra de Adolfo Bioy Casares, o desfecho nos revela que passado e futuro se entrelaçam de uma forma híbrida no presente do personagem. Um feliz acaso o salva de seu trágico destino na primeira vez - no carnaval de 1927 -; mas anos depois, na mesma época de carnaval, e na busca paranoica de reproduzir as mesmas condições para saber o que lhe aconteceu detalhadamente naqueles dias de 1927, ele não consegue escapar de seu destino.
Casares nos leva a crer que cada um de nós tem seu destino pré-determinado; e se caso tentemos fugir dele, o universo exterior e o nosso próprio universo interior irão conspirar para que cumpramos nosso destino.
Toda a ambiguidade da narrativa, com suas várias pontas soltas, são resolvidas em um final surpreendente, digno de um clássico da narrativa fantástica. Casares corrompe a linearidade temporal em sua novela. Os conceitos de passado, presente e futuro, compondo uma linha do tempo cronológica, são subvertidos, como por exemplo eventos recordados do passado que só acontecerão de fato no futuro. O presente do personagem é determinado por uma imbricação de acontecimentos do carnaval de 27, e aquele outro, de anos depois. Todo o período de intervalo entre esses dois eventos, Gauna vive em um estado de suspensão, de uma vida em espera, incompleta. A morte, que era o seu destino na última noite do carnaval de 1927, é enganada por Clara, que lhe solapa o homem desejado. Entretanto, Gauna leva seu destino na alma, até que na última noite do segundo ciclo de carnaval dos amigos, ele se cumpre. É difícil não nos lembrarmos de O sétimo selo de Ingmar Bergman, filmado em 1957, ou seja 3 anos após a publicação de O sonhos dos heróis. No filme do diretor sueco, o personagem tenta ludibriar a morte, travando com ela uma partida de xadrez da qual todos nós espectadores conhecemos o fim, inclusive o próprio personagem.
Bioy Casares consegue criar uma história que nos parece tradicional em seu estilo e conteúdo, no qual nos é mostrado o modus vivendi do portenho nas primeiras décadas do século 20. Seus hábitos, gostos, maneiras de se vestir, comportamento, o tango, o futebol, o mate, as ruas de Buenos Aires são personagens de fundo dessa história, que por si só já valeria como um romance de costumes.
“Entrou e se deitou de novo. Sentiu-se bem ao acordar. Santiago e o Mudo estavam no quarto. Conversou amistosamente com Santiago. Falaram de futebol. Santiago e o mudo eram cancheiros de um clube. Gauna falou da quinta divisão do Urquiza, para a qual foi escalado, na rua, ao completar onze anos.
(...)
Saíram do Platense. Larsen tinha esquecido alguma coisa, entrou de volta e não o viram mais. No caminho, Pegoraro pediu a Antúnez, aliás, Pasaje Barolo, que cantasse um tango para eles. Antúnez ensaiou dois ou três pigarros, falou da necessidade de matar a sede com um copo d’água ou com um cone de balas de goma (...)
(...)
Os bairros são como uma casa grande onde tem de tudo. Numa esquina fica a farmácia; na outra, a loja onde se compram calçados e cigarros, e as moças compram tecidos, brincos e pentes; o armazém fica em frente, La Superiora, bem perto, e a padaria, na metade da quadra.”
Contudo, em suas últimas páginas o livro sofre uma espécie de reviravolta, que na verdade é a abertura para uma nova concepção de leitura. O próprio autor nos adverte, dizendo que terá de ser bem claro a partir de agora para o leitor não se perder. Em seu desfecho, Bioy nos descortina o fantástico, nos obrigando a um resgate, a uma releitura, de passagens e episódios da história, para assim podermos confirmar a caminhada sem escapatória de Gauna em direção ao seu destino, ou melhor dizendo, para resgatar o último capítulo de sua história, que lhe foi solapado inadvertidamente no último instante.
O escritor argentino nos oferece uma obra literária de ficção, onde o elemento fantástico, mostrado apenas nas últimas páginas, nos obriga a rever toda a nossa concepção da história. Tudo o que nos foi contado deve ser visto agora sob um novo ângulo. É como se devêssemos ler novamente o livro, mas agora seria a leitura de uma outra história. Tudo o que antes era sólido se evapora nessa nova atmosfera fantástica e intangível criada pelo autor argentino.
(A edição usada como base para a realização do texto acima, foi a da Editora Biblioteca Azul, de 2019, lançada pela TAG experiências literárias, com tradução de Josely Vianna Baptista. Há outras edições disponíveis no mercado, como a da Cosacnaify, de 2008 e uma mais antiga, de 1991, da José Olympio, que pode ser encontrada em sebos virtuais ou físicos.)
Parabéns! A crítica é afiada e perspicaz como sempre. Nos remete ao desejo de navegar no oceano da Literatura Mágica. A introdução do mundo mágico a realidade cotidiana faz com que cada leitor tenha uma perspectiva diferente sobre o romance. O realismo fantástico é como um companheiro de viagem que nos conta causos de outrora.