O Mestre e Margarida
Mikhail Bulgakov
(Os manuscritos não ardem)
O Mestre e Margarida, a grande obra literária de Mikhail Bulgakov, foi escrita entre 1929 e 1940. O livro é uma sátira sócio-política à URSS de Stalin. O autor usa seu romance como uma forma de catarse e “vingança”, criticando de maneira irônica e sarcástica as instituições governamentais soviéticas; sua burocracia, suas autoridades públicas (principalmente aquelas ligadas ao meio cultural, artístico e literário); e também a velada burguesia russa, pois apesar da revolução socialista de 1917, a estrutura política e social da URSS manteve uma burguesia que, se não podia ser batizada com esse nome, mantinha os mesmos privilégios, controles e obtusidades de sua irmã gêmea dos países capitalistas.
O romance explora, de maneira evidenciada, elementos autobiográficos. O Mestre, personagem que ocupa o epicentro do romance, possui uma trajetória que faz referência, em alguns pontos, à própria trajetória literária do autor. Este, assim como seu personagem, também teve seus textos recusados pelos homens que controlavam os veículos de divulgação literária na Rússia: diretores de teatro e editores. Assim como seu personagem, Bulgakov teve o auxílio, a compreensão, e o apoio de uma mulher que o amava, respeitava e admirava, e que sacrificou boa parte de sua vida em prol do homem Bulgakov e de sua obra. Elena Shilovskaia dedicou parte dos onze anos em que viveu com Mikhail, cuidando de sua delicada saúde e ajudando nas revisões de sua obra-prima. Após a morte do marido, Elena luta durante mais de trinta anos até conseguir a publicação do derradeiro romance de Bulgakov; primeiro, dilapidado, em uma revista russa, no final da década de 60, e depois na íntegra, no início da década de 70. A Margarida do romance também dedica sua vida ao mestre e sua obra (assim como Elena, abandona um casamento estável, com um indivíduo respeitável no seio da sociedade soviética, para viver com a pessoa que ama), porém Bulgakov superdimensiona e extrapola o sacrifício da personagem: Margarida doa não apenas sua vida ao seu amado, mas sim toda sua eternidade, cedendo sua alma ao Diabo em troca da restituição do homem que ama, cujo paradeiro ela desconhece (ele encontra-se internado em um hospício por vontade própria), e dos manuscritos da obra que é sua consumação literária e que ele havia queimado pouco antes de se separar dela. Porém, como o próprio Diabo diz: “os manuscritos não ardem.” (O próprio Bulgakov, em 1929, assim como seu personagem em O Mestre e Margarida, queima os manuscritos de seu diário, escrito na década de 20, e que lhe foi devolvido pelo departamento da polícia que o havia confiscado anos antes. Contudo, na década de 80, foi encontrada nos arquivos da KGB uma cópia do manuscrito feita pela própria polícia soviética).
E o que a figura do Diabo tem a ver com tudo isso? Bulgakov, em sua “vingança literária”, em seu acerto de contas com Stalin, a URSS e seus dirigentes institucionais, e até mesmo com sua própria estrutura sócio-política, anacrônica e burocrática, cria um romance fantástico, absurdista e surrealista, no qual o Diabo, em carne, osso e aura maléfica, invade Moscou, acertando as contas pendentes do autor.
O romance inicia-se com a conversa de dois homens: Berlioz, presidente de uma associação literária, e Ivan Nikolayich, um jovem poeta. Os dois discutem acerca da existência ou não de Jesus, que para o cristão Bulgakov confunde-se com a existência do próprio criador, tendo como base a Santíssima Trindade. O Diabo, inadvertidamente, se intromete na conversa, discordando peremptoriamente dos debatedores que, em comum acordo, concluem pela não existência de Jesus; pois ao negarem a existência de Jesus/Deus, ou seja, do bem, estariam negando também a existência de seu contrário, o Diabo, ou seja, ele próprio: a encarnação do mal:
“Posso juntar-me aos senhores? – perguntou o homem cortesmente, e, enquanto os dois amigos se afastavam um pouco contrariados, jeitosamente tomou lugar entre eles e logo entrou na conversa. – Se não estou enganado, o senhor estava dizendo que Jesus nunca existiu, não foi? – perguntou, voltando o olho esquerdo verde para Berlioz. (...) Perdoem-me a rudeza, mas estarei certo em pensar que os senhores também não acreditam em Deus? – E acrescentou um tanto escandalizado: - Juro que não direi nada a ninguém.”
A partir desse ponto desencadeia-se uma série de eventos absurdos e fantásticos, em que Bulgakov solta o Diabo e seu grotesco séquito por toda Moscou. Sugestivamente as vítimas do Diabo, aqueles que têm contato direto com o Demônio e seus companheiros e, que devido a isto, perdem sua sanidade, seus empregos e, em alguns casos, até a própria vida, são exatamente aqueles personagens que simbolizam os detratores e perseguidores do autor: diretores de teatro, críticos, autoridades governamentais, e a anacrônica e contraditória burguesia soviética. Bulgakov usa o Diabo para se exorcizar de seus próprios Demônios. A princípio pode parecer estranho ao leitor desprevenido que o cristão Bulgakov use o Diabo, figura simbólica do mal, como justiceiro, punindo aqueles que representam, segundo ele, tudo de ruim, deletério e anacrônico para o povo e para a cultura russa. Contudo, para o autor, como fica bem claro no final do romance, com a aparição de Mateus, o levita (Mateus, como enviado de Deus, exige que o Diabo poupe o Mestre e Margarida, dando a eles o repouso e paz eternos), o bem e o mal são complementares; e Deus e o Diabo são duas faces da mesma moeda, duas faces do mesmo ser. E é por esse motivo que o Diabo vai a Moscou punir aqueles que se deixaram corromper pelo mal.
O romance apresenta uma atmosfera surrealista, composta por feiticeiras nuas, gatos falantes, porcos voadores, corpos sem cabeças, mortos que voltam à vida para participar de festins diabólicos, pessoas que desaparecem e imediatamente surgem a quilômetros de distância, vampiros e tudo o mais que a profícua mente criativa de Bulgakov pôde conceber para simbolizar o caos social, político e cultural de sua amada Rússia:
“Tanto a condutora como os passageiros pareciam completamente esquecidos da coisa mais extraordinária: não que o gato tivesse entrado no bonde – isso afinal era possível, mas que o animal se oferecesse para pagar sua passagem! O gato demonstrou ser não apenas um animal ciente do dever de pagar a passagem, mas também respeitador da lei. Ao primeiro grito da condutora, ele recuou e foi se sentar no ponto de parada, acariciando suas costeletas com a moeda de dez kopeks. Mas tão logo a condutora deu sinal de partida e o veículo começou a andar, ele agiu como alguém que está determinado a chegar a seu destino. Quando o último carro da composição passou, ele saltou sobre o gancho de acoplamento, fixou a pata em torno de um cano que descia de uma das janelas e passou para dentro do veículo, economizando assim dez kopeks”
O Mestre e Margarida são os únicos que, apesar de flertarem e negociarem com o Diabo, são poupados no processo de “limpeza” realizado por este. Margarida simboliza a ingenuidade, ela se deixa corromper pelo Demônio em troca de algo mais nobre aos seus olhos: o amor. A personagem busca recuperar o homem que ama e que desapareceu. Por sua vez, o Mestre representa o escritor em toda sua dignidade literária, aquele que não se deixa corromper e não aceita as imposições de instituições retrógradas. Ele não abre concessões à sua arte e prefere queimar seus manuscritos e se recolher a um sanatório a fazer um pacto de mediocridade com os detentores do poder.
Há também outro motivo que concorre para a salvação do Mestre e de sua amada. O escritor criado por Bulgakov escreve um romance sobre Pôncio Pilatos, ou seja, sobre a covardia, o pecado, a culpa, o castigo e o perdão. E aqui vemos a influência do grande autor russo, Dostoiévski, para quem essas questões assumem o ponto central e irradiador de suas principais obras. Paralelo ao drama do Mestre, ao desespero de Ivan Nikolayich (o jovem poeta já citado aqui e que aparece nas primeiras páginas do romance, travando uma discussão com Berlioz sobre a existência histórica de Jesus), e às peripécias justiceiras do Diabo e seu séquito, nós temos a história de Pôncio Pilatos, escrita pelo Mestre (algumas partes da qual são reproduzidas no romance), e seu drama pessoal: por covardia (segundo Bulgakov o pior dos pecados aos olhos do Diabo) Pilatos não perdoa Ieshua (Jesus) e arrasta essa culpa por mais de dois mil anos, atormentado no alto de uma colina, sendo castigado por sua covardia.
O romance tem seu desfecho quando o Mestre, conduzido pelo Diabo até a colina onde Pilatos, seu personagem, está pagando pelos seus pecados, liberta-o, dando-lhe o perdão (mesmo perdão que este negou a Jesus) e dizendo a frase que encerra seu romance sobre o procurador romano: “Você está livre! Livre! Ele está esperando por você!”
E Pilatos segue ao lado de Jesus, acertando ambos suas contas. E segundo as palavras do próprio Woland, ou seja, do Diabo: “Vamos deixá-los a sós, não os perturbemos. Quem sabe, talvez, se eles não concordarão em algum ponto.” Essa imagem, de Jesus e Pilatos lado a lado e que antecede os momentos finais do romance, simboliza a visão dual que o escritor Bulgakov possui de Deus e do Diabo. Antagonistas que se completam e que formam um único e indivisível todo. Esta imagem do bem e o mal caminhando juntos, confundindo-se, é coerente com a epígrafe contida logo antes do primeiro capítulo, e que fornece ao leitor uma das principais chaves de leitura desse instigante romance:
“Afinal dize-me... quem és?
Esse poder a quem sirvo
Cujos desejos se confundem com o mal
E que, entretanto, sempre faz o bem.”
Goethe, Fausto
(Há algumas edições de O Mestre e Margarida disponíveis no mercado brasileiro. Entretanto, as mais antigas, apesar de terem o grande mérito da iniciativa de seus editores de publicarem esse brilhante romance, tem seus textos traduzidos do inglês - com exceção da Ars poética. - Por isso indicamos as edições mais recentes da Alfaguara e Editora 34, com traduções bem cuidadas e feitas diretamente do russo.)
Obrigado Max, Márcia e Wellington, feliz por terem gostado do texto, e quem ainda não leu este maravilhoso romance, não percam tempo... não irão se arrepender.
Já li esta obra. Excelente exemplo de romance a serviço das concepções e idealizações do autor. Parabéns pela resenha literária.
Também não li O Mestre e Margarida, mas adoro mesmo é ouvir o Nelson contar as histórias dos livros que lê, e agora ler por aqui também!
Ainda não li. Já estava na fila de minhas futuras leituras. Conheci o livro quando li "De Lisboa a Roma", em que o autor (o próprio Nelson Ricardo Reis) cita - várias vezes - "O mestre e Margarida". Mais uma vez, um texto que nos instiga a querer mais sobre a obra analisada.