A LEBRE COM OLHOS DE ÂMBAR
Edmund de Wall
“Não são apenas as coisas que levam histórias consigo. As histórias também são um tipo de coisa.”
“Já logo na vitrine da livraria, identificou a capa com o título que procurava. Seguindo essa pista visual, você abriu caminho na loja, através da densa barreira dos Livros Que Você Não Leu que, das mesas e prateleiras, olham-no de esguelha tentando intimidá-lo. Mas você sabe que não deve deixar-se impressionar, pois estão distribuídos por hectares e mais hectares os Livros Cuja Leitura É Dispensável, os Livros Para Outros Usos Que Não a Leitura, os Livros Já Lidos Sem Que Seja Necessário Abri-los, pertencentes que são à categoria dos Livros Já Lidos Antes Mesmo De Terem Sido Escritos. Assim, após você ter superado a primeira linha de defesas, eis que cai sobre sua pessoa a infantaria dos Livros Que, Se Você Tivesse Mais Vidas Para Viver, Certamente Leria De Boa Vontade, Mas Infelizmente Os Dias Que Lhe Restam Para Viver Não São Tantos Assim. Com movimentos rápidos, você os deixa para trás e atravessa as falanges dos Livros Que Tem A Intenção De Ler Mas Antes Deve Ler Outros, dos Livros Demasiado Caros Que Podem Esperar Para Ser Comprados Quando Forem Revendidos Pela Metade do Preço, dos Livros Idem Quando Forem Reeditados Em Coleções De Bolso, dos Livros Que Poderia Pedir Emprestados A Alguém, dos Livros Que Todo Mundo Leu E É Como Se Você Também Os Tivesse Lido. Esquivando-se de tais assaltos, você alcança as torres do fortim, onde ainda resistem:
os Livros Que Há Tempos Você Pretende Ler,
os Livros Que Procurou Durante Vários Anos Sem Ter Encontrado,
os Livros Que Dizem Respeito A Algo Que O Ocupa Neste Momento,
os Livros Que Deseja Adquirir Para Ter Por Perto Em Qualquer Circunstância,
os Livros Que Gostaria De Separar Para Ler Neste Verão,
os Livros Que Lhe Faltam Para Colocar Ao Lado De Outros Em Sua Estante,
os Livros Que De Repente Lhe Inspiram Uma Curiosidade Frenética E Não Claramente Justificada...’’
Espere, vamos voltar algumas estantes. Esta não... esta não… espere, sim, esta mesmo!: “Livros Que Há Tempos Você Pretende Ler.” Este texto que reproduzi acima, está nas primeiras páginas do instigante romance Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino. Sua presença a título de introdução deste ensaio se justifica pelo seguinte motivo: há aproximadamente dez anos tomei conhecimento da existência do livro de Edmund de Wall assim que foi lançado no Brasil, e desde então ele habita minhas listas de leitura. Como Calvino nos mostra tão bem, escolher um livro para ler nem sempre é uma tarefa das mais tranquilas e isentas de contradições e agonias. Muitas vezes entramos em uma livraria com o intuito de comprar um determinado livro e saímos com outro, ou outros que não necessariamente serão imediatamente lidos. Em relação ao livro A lebre com olhos de âmbar, eu já tinha escolhido sua leitura há uma década, mas precisava que ele me encontrasse, e o fizesse isso no momento certo. E foi o que ocorreu há algumas semanas. E não me arrependo por ter passado tanto tempo sem ter lido essa obra ímpar, apenas flertado com ela, sem consumar o ato físico do amor literário, ou seja, a leitura; pois encontros inesquecíveis obedecem a regras próprias. É como um longo namoro, que um dia se efetiva em um terno e eterno enlace.
O livro de Edmund de Wall não é um romance (é a primeira vez que publico aqui um ensaio dedicado a uma obra não-ficcional, mas creio que ao final da leitura vocês irão compreender o motivo da exceção), também não pode ser considerado um livro de memórias ou mesmo um livro de história, apesar de conter elementos dos três gêneros. A lebre com olhos de âmbar é um livro que conta a história de uma coleção, mais precisamente a história de 264 netsuquês. Netsuquês são miniaturas feitas a mão, típicas da cultura artística e artesanal do Japão. Representam diversas figuras: de animais existentes como tigres, ratos, lebres; a não existentes, como dragões; passando por figuras populares como camponeses e samurais; ou representando cenas cotidianas como uma jovem se banhando em uma tina, ou mesmo crianças brincando. Podem ser feitos de madeira, madrepérola ou marfim, ou mais raramente, de outros materiais. São minúsculos, geralmente não passam de quatro centímetros de altura. Sua função precípua é ser uma espécie de presilha ou cavilha, usada nos quimonos. Como diz De Wall: “Era uma coleção muito grande de objetos muito pequenos.” O autor herda a coleção de seu tio-avô e decide largar, por dois anos, suas atividades de artista plástico (De Wall é um ceramista conceituado na Inglaterra e em outros países da Europa, inclusive com peças fazendo parte de importantes museus pelo mundo) para perseguir os caminhos feitos por essa coleção até chegar às suas mãos.
A lebre e outros netsuquês
Ao percorrer a trajetória de sua coleção herdada, De Wall no leva por um passeio, nem sempre com belas imagens, pela história das artes, da economia e da política europeia, dos anos setenta do século XIX, até os anos seguintes à segunda guerra mundial, e por fim ao Japão pós-guerra. Passamos pela Paris do final do século XIX - anos da belle-époque - e cruzamos com Renoir, Manet, Proust, dentre outros, todos amigos de Charles, primo de seu bisavô e primeiro dono da coleção. Depois De Wall, sempre acompanhando a coleção de netsuquês, nos leva para a Viena Fin-de-siécle, até o pós Segunda Guerra Mundial. No final da década de 1940, os netsuquês voltam para casa com seu tio-avô, que se muda para Tóquio; e aqui o autor nos desenha ótimos quadros analíticos da situação econômica, política e cultural do Japão pós-guerra. E finalmente os netsuquês… mas estou me antecipando. Voltemos a Paris da década de setenta do século XIX.
Edmund de Wall, através de uma profunda e exaustiva pesquisa em documentos familiares, bibliotecas de Viena, Odessa, Paris, centros judaicos em Viena, museus em Paris, e isso sem falar no escrutínio que faz da memória de seu pai, de seu tio, e da própria, relembrando conversas que teve com a avó, consegue reproduzir, de forma quase romanceada, a história e o cotidiano de sua família, os Ephrussi, uma tradicional família judaica egressa de Odessa, na Ucrânia, que começou sua fortuna através do comércio de grãos, para depois tornarem-se os banqueiros mais poderosos da Europa ao lado dos Rothschild.
Na segunda metade do século XIX, Joaquim Ephrussi, o patriarca da família, manda um de seus filhos para Viena e o outro para Paris, com o objetivo de dirigirem os bancos Ephrussi desses dois importantes centros. É em Paris que Charles, neto de Joaquim Ephrussi e filho de Leon Ephrussi, cresce e torna-se um dândi e mecenas de pintores como Degas, Renoir e Manet. Charles, além de colecionador e comprador das obras dos impressionistas, é um conhecedor da história da arte, inclusive escrevendo críticas em jornais da cidade e gozando da intimidade e amizade de alguns dos grandes artistas da época. De Wall descobre inclusive uma correspondência mantida entre Charles e Manet: “Já é quinta feira, escreve Manet a Charles, e ainda não tive notícias tuas. Evidentemente deve estar absorvido pela espirituosidade de tua anfitriã (...) vamos toma tua pena e escreva-me logo.” Sem dúvida uma amizade não tão desprovida de interesse, já que Charles, um milionário judeu, colecionava as obras desses artistas. Foi inclusive com Charles Ephrussi que aconteceu um caso pitoresco na história das artes: Charles comprou um quadro de Manet, onde este retratava um favo de aspargos, com vinte talos. Manet cobrou 800 francos pela obra. Charles, sempre um mecenas, além de amigo de Manet, mandou 1.000 francos ao pintor. Uma semana depois ele recebe um outro quadro enviado por Manet, contendo apenas um talo de aspargo pintado, com a nota: “Este parece ter escapado do maço.” Esta história foi contada por Proust, ex-secretário de Charles e conhecido de Manet, em um dos volumes de Em busca do tempo perdido, mudando os nomes dos protagonistas. Charles também convenceu Louise, sua amiga e amante, a contratar Renoir para pintar suas irmãs, Alice e Elizabeth, ajudando assim o artista que passava por dificuldades financeiras. O quadro pintado por Renoir chama-se Rosa e Azul, e hoje pertence ao acervo do MASP.
Rosa e Azul (Auguste Renoir)
É neste momento da história da arte que há uma avalanche de pinturas, objetos artísticos, artesanatos, artefatos de guerra, gravuras, ou seja, todo o tipo de arte, sub-arte, bricabraques ou simples objetos japoneses, de vestimentas a biombos, invadindo Paris. Essa febre nipônica ocorre devido a abertura cultural e econômica do Japão a partir de 1867, com o advento da era Meiji, que durou até 1912 e foi responsável pela modernização e industrialização do país, após séculos de feudalismo sob o regime dos Xoguns. A grande maioria dos artistas e colecionadores europeus, e principalmente franceses, não ficaram imunes a esse japonismo. Pintores como Monet, Manet, Van Gogh, e o próprio Charles, passaram a adquirir todo o tipo de arte e artesanato japoneses. E é em uma dessas visitas a uma galeria especializada em objetos nipônicos, a Galeria Sichel, que Charles compra a coleção de 264 netsuquês. O famoso escritor francês, Edmond de Goncourt, desafeto de Charles e também colecionador de netsuquês, escreve assim sobre estes curiosos e artísticos objetos japoneses, que pervertem a linha que separa a arte do artesanato:
“Uma classe inteira de exímios artistas excepcionais - em geral especializados - são os responsáveis pela (...) fabricação e dedicam-se exclusivamente à reprodução de um objeto ou criatura. Assim ficamos sabendo de um artista cuja família vem há três gerações esculpindo ratos no japão, nada além de ratos. Além desses artistas profissionais (...) há ainda escultores amadores de netsuquês, que se entretêm esculpindo para si mesmos pequenas obras-primas. Um dia o Sr Philippe Sichel se aproximou de um japonês sentado à soleira de casa, trabalhando em um netsuquê que estava nos últimos estágios de acabamento. O senhor Sichel perguntou se ele gostaria de vendê-lo (...) depois de terminado. O japonês começou a rir, e acabou contando que isso levaria aproximadamente 18 meses; então mostrou a ele outro netsuquê que levava preso ao cinto, e informou que aquele havia levado vários anos de trabalho para ser feito. E conforme a conversa avançou, o artista amador confessou ao Sr. Sichel que ele ‘não trabalhava nunca em longos estirões de muitas horas (...) que ele precisava estar no clima (...) que era só em determinados dias (...) dias em que ele havia fumado um ou dois cachimbos, quando já se sentia alegre e revigorado,’ basicamente lhe fazendo saber que, para aquele trabalho, ele precisava de horas de inspiração.”
Os Ephrussi já viviam na França há algumas décadas, e além de se considerarem franceses, a família era - o que se chamava na época os judeus plenamente inseridos na cultura local -, uma família de assimilados. Falavam francês fluentemente, praticamente não frequentavam as sinagogas, vestiam-se e comportavam-se como não judeus. Porém o antissemitismo começa a crescer de forma exponencial na segunda metade do século XIX em alguns países da Europa, dentre eles a França. Nesta época Judeus de várias partes do mundo, principalmente da Rússia, da Ucrânia - como os Ephrussi -, e de todo o leste Europeu, deslocam-se para centros financeiros como Paris, Londres e Viena. Muitos deles eram financistas poderosos que foram responsabilizados por crises e colapsos nas bolsas de valores desses países. Um antissemita famoso na época, Édouard Drumont, escreveu em seu livro, La France Juive, lançado em 1886 e um sucesso de venda na França e em outros países da Europa:
“A audácia com que esses homens tratam essas enormes operações que para eles são meras brincadeiras numa festa, é algo incrível. Com uma assinatura Michel Ephrussi compra ou vende 15 milhões em petróleo ou trigo. Sem problemas; sentado por duas horas junto a uma coluna da bolsa de valores e confiando fleumaticamente sua barba com a mão esquerda, ele distribui ordens aos asseclas que vivem à sua volta com os lápis a postos.”
Os banqueiros judeus sabiam de sua força, e mesmo que várias famílias já estivessem plenamente “assimiladas”, eram muito unidas em suas transações financeiras. Isso fez que as manifestações antissemitas crescessem cada vez mais e de forma violenta - mesmo que em palavras - por parte de alguns meios de comunicação. Edouard Drumont, no livro já citado, defende uma tese que persegue os judeus até os dias de hoje:
“Drumont argumentava que os judeus, por serem intrinsecamente nômades, não sentiam dever nada ao estado (...) A família Ephrussi certamente se considerava parisiense. Drumont com certeza achava que não: ‘Judeus vomitados de todos o guetos da Europa, agora estão instalados como senhores em residências históricas que evocam as lembranças mais gloriosas da antiga França (...) os Rothschild estão em toda parte: em Ferriéres e em Les Vaux-de-Cernay (...) os Ephrussi em Fontainebleau, no palácio de Francisco I.’”
Na década de 90 do século XIX o antissemitismo recrudesce. Em 1894 explode o caso Dreyfus, que divide a França entre os “dreyfusards” (aqueles que defendem a inocência do oficial judeu Alfred Dreyfus) e os “antidreyfusards” (que defendem a culpabilidade do oficial, acusado de traição). Degas, um antidreyfusard, rompe relações com Charles. Neste momento também o japonismo perde força nas altas rodas de Paris. Há uma mudança de exotismo, como diz De Wall. Então, em 1899, Viktor, primo de Charles - filho do irmão de seu pai, que foi enviado para chefiar os negócios da família em Viena -, anuncia seu casamento. O presente de Charles? Sua coleção de 264 netsuquês.
Neste momento da narrativa, De Wall simplesmente abandona Charles e Paris, e parte para Viena atrás de seus netsuquês. Saberemos, a partir daí, apenas por rápidos flashs o que aconteceu com Charles e seus irmãos. Temos de entender que o objetivo principal de De Wall não é contar detalhadamente a história de todos os ramos de sua família ou mesmo a história da Europa entre 1870 e o momento em que recebeu a coleção de herança. Sua proposta é contar a história da sua coleção de 264 netsuquês, sendo assim ele deve seguir seus passos. Por consequência ele dá as costas a Charles - fascinante personagem que acompanhamos por quase 100 páginas, e pela qual o próprio De Wall se afeiçoa, por imergir em sua vida na Paris do final do século XIX -, e vai para a Viena de 1899, literalmente a Viena Fin-de-siecle:
“Basta de passear com Charles e ler sobre interiores parisienses, é hora de começar a ler ‘Die Neue Freie Presse’ e de se concentrar na vida urbana vienense da virada do século. Estamos em outubro e descubro que passei quase um ano com Charles - muito mais do que julguei ser possível, imprevistos emaranhados de tempo de leitura sobre o caso Dreyfus. Não preciso mais mudar de andar na biblioteca: as leituras francesa e alemã ficam lado a lado. Fico ansioso para saber para onde meu lobo de madeira e meu tigre de marfim estão se mudando agora. Reservo passagem para Viena e toco para o Palais Ephrussi.”
Viktor, o primo de Charles, vai se casar com Emmy. São os bisavós de Edmund De Wall, O autor, ao seguir os passos de seus netsuquês, vai nos colocando a par de suas pesquisas, de suas andanças pelas ruas modernas de Paris e da Viena dos dias de hoje. Ele é quase atropelado ao ficar parado na Ringstrasse barulhenta, em frente ao Palais Ephrussi. Ele nos descreve as emoções e frustrações a cada novo documento descoberto. Em Paris ele entra na casa que pertenceu a Charles, em Viena ele faz um tour demorado e detalhado com uma espécie de guia, por todos os cômodos do antigo Palais Ephrussi, hoje sede dos Cassinos da Áustria, e onde sua avó passou a infância.
O Palais Ephrussi
Essa maneira de narrar de De Wall, na qual ele mistura informações históricas com suas impressões atuais colhidas durante o processo de pesquisa, torna a narrativa mais leve e fluida, e nos aproxima ao mesmo tempo dos “personagens” de sua família, e do próprio autor, vivenciando com ele suas emoções, impressões e situações curiosas:
“Faço aqui também minha observação de arquitetura. Ou melhor, tento fazer minha observação de arquitetura, mas o Palais hoje fica em frente a uma parada de bonde sobre uma estação de metrô que libera pessoas em um fluxo constante. Não há nenhum lugar onde eu possa me encostar e fazer uma pausa para observar. Tento olhar a linha do telhado contra o céu de inverno e quase fico na frente do bonde, então um sujeito barbudo com três casacos e uma balaclava me passa um sermão sobre minha imprudência, e dou a ele bastante dinheiro para me deixar em paz (,,,) Então deixo cair meus óculos e a armação se parte próximo à ponte do nariz, de modo que preciso juntar as metades para enxergar alguma coisa.”
O livro é repleto de trechos como este, que são inseridos antes, durante e após análises históricas mais densas. Assim que chega a Viena, antes de começar suas pesquisas propriamente ditas, o autor se familiariza com a cidade e os arredores da casa de seus antepassados: “Então resolvo caminhar, obrigo-me a andar por entre os estudantes e chego à Ringstrasse, onde já posso me mover e respirar, Só que se trata de uma rua sinuosamente ambiciosa, de tirar o fôlego em sua escala imperial. É tão grande que um crítico argumentou, quando foi construída, que ela havia criado uma neurose inteiramente nova, a da agorafobia.” E mais a frente diz: “Percebo que estou indo depressa demais, andando como se tivesse um destino, em vez de um ponto de partida.” Essa maneira de narrar, fazendo com que o leitor não tenha apenas acesso aos resultados de sua pesquisa, mas que também compartilhe os processos desta pesquisa, nos permite, além de uma identificação com a história narrada, um raro momento de interação com um processo de pesquisa longo e acurado, além de emotivo. É como se assistíssemos ao filme e ao make off ao mesmo tempo.
A Viena da virada do século se reformula: Francisco José ordena a construção da Ringstrasse, uma avenida em forma de anel, que substitui o antigo muro medieval que circunda a cidade antiga. Os velhos fossos são aterrados, ruas alargadas, uma nova sede para a prefeitura, uma ópera, um novo prédio para o parlamento, museus e teatros são edificados. São construções portentosas, e até hoje quando caminhamos pelo centro de Viena temos a impressão de estar dentro de um gigantesco museu de arquitetura neoclássica. De Wall cede a fala a um observador insólito para descrever a Viena daquela época, mas um incontestável apreciador da arte clássica e neoclássica:
“É tudo tão conscientemente grandioso, e no entanto tem algo de Cecil B, de Mille. Não sou o melhor público para isso. Um jovem pintor e estudante de arquitetura, Adolf Hitler, teria uma reação muito mais visceral à Ringstrasse: ‘Desde cedo até tarde da noite corro de um objeto de interesse a outro, mas sempre foram os edifícios que primeiro chamaram minha atenção. Eu podia ficar parado diante da Ópera durante horas, olhando o parlamento por horas: toda a Ringstrasse me pareceu um encantamento tirado das Mil e uma noites.’ Hitler retrataria todos os grandes edifícios do Ring, o Burgtheater, o parlamento de Hansen, os dois grandes prédios diante do Palais Ephrussi, a universidade e a Votivkirche. Hitler apreciara o modo como o espaço podia ser usado para uma exibição de efeito dramático. Ele compreendera todos esses ornamentos de um modo diferente: segundo ele, aquilo expressava ‘valores eternos.’”
A Ringstrasse
Ao perseguir os passos de seus netsuquês por Viena, De Wall nos mostra um quadro amargo, trágico, realista e revoltante da perseguição aos judeus na Europa. Toda essa opulência arquitetônica e o crescimento de canteiros de obras por Viena foram pagos com vendas de terrenos e imóveis para a classe ascendente de banqueiros e industriais, quase toda ela formada por judeus enriquecidos a uma, no máximo duas, gerações. Os grandes palacetes da Ringtrasse eram habitados basicamente por essas ricas famílias judias.
De Wall anda por Viena agora acompanhado de Robert Musil e seu Homem sem qualidades, e dos livros de Joseph Roth - outro grande cronista da decadência do Império Austro-Húngaro -, e volta a discorrer sobre a questão da assimilação dos judeus, agora em Viena. Segundo De Wall, eles se integraram de tal forma ao país, sua cultura e língua, que já não podiam ser identificados na rua (como poucos anos depois seriam, pois foram obrigados a usar uma braçadeira com o desenho da estrela de David.): “Ali em Viena há questões sutilmente diferentes com relação aos judeus (...) Aqui, o que se dizia nas ruas era que os judeus haviam sido tão assimilados, imitando tão bem seus vizinhos gentios, que eles haviam conseguido enganar os vienenses e simplesmente haviam desaparecido no tecido da Ring.”
O autor nos descreve com riqueza de detalhes a vida cotidiana de Viktor e Emmy no Palais Ephrussi: as disposições dos quartos, os móveis, as crianças, dentre elas sua avó e seu tio-avô, Ignace, que lhe deixou de herança os netsuquês. Ele também nos descreve o local onde ficaria a vitrine com as 264 miniaturas. A escolha de Emmy foi seu quarto de vestir, o que demonstra um carinho pelo presente mas não o suficiente para se orgulharem e exibi-los nos salões do Palais. Não nos esqueçamos que a arte japonesa tinha saído de moda na França e nunca teve seus dias de glória em Viena. No capítulo 15 vemos surgir pela primeira vez o nome de Anna, a nova criada de Emmy, quase uma menina. De Wall mergulha fundo na vida dessa família e na Viena dos primeiros anos do século XX:
“Meu quadro da vida judaica na Viena fin-de-siecle é perfeitamente lustrado, consistindo basicamente de Freud e vinhetas de conversas entusiasmadas e intelectuais nos cafés. Estou mesmo apaixonado por meu tema de ‘Viena como cadinho do século XX’, assim como muitos curadores acadêmicos. Agora estou na parte vienense da história, ouvindo Mahler e lendo meus Schnitzler e Loos, e tenho me sentido, eu também, bastante judeu.”
Ele descobre referências à sua família em obras literárias escritas na época, inclusive na Magnum Opus de Joseph Roth, A marcha de Radetzky: “É no irrepreensível Efrussi Bank - Roth grafa à maneira russa - que Trotta deposita sua fortuna em A marcha de Radetzky.” Os Ephrussi são ricos, glamourosos, frequentam as altas rodas e se sentem parte de Viena, parte do Império Austro-Húngaro, na verdade são parte principalmente de Viena. Enquanto isso, no quarto de vestir de Emmy, os netsuquês se mantêm quietos e imóveis. Só ganham vida quando Emmy, com a ajuda de Anna, se arruma para sair ou receber amigos para o jantar, e ao experimentar seus vestidos abre a vitrine e permite que os meninos escolham alguns netsuquês para brincarem:
“As crianças no quarto de vestir escolhem a miniatura favorita e brincam com ela sobre o tapete amarelo-claro. Gisela adorava a dançarina japonesa, cobrindo com seu leque o brocado do vestido, no meio de um passo. Iggie amava o lobo, um emaranhado tenso e escuro de patas, marcas apagadas nos flancos, olhos reluzentes e rosnando. E adorava o feixe de lenha atado por uma corda, e o mendigo que caiu no sono sobre a tigela de moedas de modo que só se vê o topo calvo de sua cabeça. Há ainda um peixe seco, todo escamas e olhos murchos, com um ratinho que parece ser seu dono, de olhos negros incrustados. E havia também o velho louco de costas ossudas e olhos arregalados, mordendo um peixe e com um polvo na outra mão. Elizabeth, ao contrário, adorava as máscaras, as conchas, as frutas.”
Os Eprhussi, assim como outras famílias judias ricas e assimiladas, sentem-se chocados, quando no dia “28 de junho de 1914 o arquiduque Franz Ferdinand, herdeiro do Império Habsburgo, é assassinado por um jovem nacionalista Sérvio.” Tem-se início, um mês depois, a Primeira Guerra Mundial. Os Eprhussi, assim como os Rothschild, dentre outras famílias judias milionárias, ajudam a financiar os custos do exército Austro-Húngaro. Seus filhos também se alistam. Não fazem isso para demonstrar um patriotismo, mas sim por verdadeiro patriotismo. E claro, seria uma ótima forma dos outros austríacos verem que antes de ser judeus, eram austríacos. Mas em uma família multinacionalista como os Eprhussi essa guerra europeia trás uma outra questão delicada, que extrapola um possível patriotismo: “Há uma crueldade nisso tudo, os primos franceses, austríacos e alemães, cidadãos russos, tias inglesas, toda essa maldita consanguinidade, toda territorialidade, toda aquela falta de amor nômade pelo país, precisa tomar um partido. De quantos lados uma família pode ficar. Tio Pips é convocado, lindo de uniforme com gola de astracã, para lutar contra seus primos franceses e ingleses.”
A família Ephrussi sofre algumas consequências com a guerra, assim como toda Europa, mas nada que abale drasticamente sua rotina. O banco continua funcionando, Emmy continua frequentando festas e passando temporadas em Kovecses. De Wall encontra um caderno marcando as óperas assistidas por sua avó, a jovem Elizabeth, no ano de 1916; são no total de onze.
Enfim a guerra acaba, a Áustria perde, o Império Austro-Húngaro é dissolvido, a Áustria, de uma potência com 52 milhões de súditos, passa a ser um pequeno país de 6 milhões de cidadãos. Mas o banco Ephrussi continua viável. O que começou a se tornar inviável era a vida dos judeus na Alemanha e na Áustria. O antissemitismo, até então pontual e um tanto velado, tornou-se feroz. Em 1922, um escritor chamado Hugo Bettauer publica um romance crítico e irônico, em defesa dos judeus. Esse romance, poucos anos depois, em 1924, torna-se um filme dirigido por Hans Breslauer. Uma cópia desse filme, até então desaparecido, foi encontrado em 2015. O romance chama-se, A cidade sem judeus. Uma obra vaticinadora. Sem dúvida nem Bettauer, e talvez ninguém naquele momento, pudesse imaginar que a realidade que o mundo veria menos de duas décadas depois iria superar seu livro em horror e pusilanimidade:
“Nesse tenso romance ele conta a história de Viena abatida pela pobreza do pós-guerra e da ascensão de um demagogo (...) que aglutina o povo de um modo muito simples: ‘vejamos como está a nossa pequena Áustria hoje. Nas mãos de quem está a imprensa, e portanto a opinião pública? Nas mãos dos judeus! quem só fez acumular bilhões e mais bilhões desde o fatídico ano de 1914? Os judeus! Quem controla a tremenda circulação do nosso dinheiro, quem ocupa a mesa do diretor dos grandes bancos, quem dirige as indústrias? Os judeus! (...) O chanceler tem uma solução, uma solução deveras simples: a Áustria expulsará os judeus. Todos eles, inclusive filhos de casamentos mistos, serão deportados organizadamente em trens. Os judeus que tentarem continuar secretamente em Viena o farão à custa de tormentos mortais.’À uma da tarde os apitos avisaram que o último carregamento de judeus já havia deixado Viena, e às seis horas (...) todos os sinos badalaram anunciando que não havia mais judeus na Áustria.’ E o romance, com suas arrepiantes descrições das dolorosas separações de famílias, cenas desesperadoras em estações de trem enquanto vagões fechados levam judeus embora, é contraposto à decadência de Viena em provinciana periferia desmazelada, depois que os judeus que a animavam desaparecem. Não há mais teatro, boatos, jornal, moda ou dinheiro até que por fim Viena convida os judeus a voltarem. Bettauer foi assassinado por um jovem nazista em 1925. O assassino foi defendido no processo pelo líder do Partido Nacional Socialista Austríaco, dando ao partido algum prestígio junto à frágil política vienense. Naquele verão, oitenta jovens nazistas atacaram um restaurante lotado aos berros de ‘Juden Hinaus!’”
O que acontece com a família Ephrussi nos anos que se seguem pode ser visto em dezenas, centenas de livros de história, romances e filmes; porém De Wall nos conta a história de sua família: avós, bisavós, etc, que ele próprio desencavou de arquivos em Viena, do sótão de seu pai e da memória de sua avó. A parte III do livro, com pouco mais de 40 páginas, mostra tudo aquilo que já sabemos sobre a história da perseguição aos judeus na Alemanha, Áustria e em outros países da Europa, mas contado através do olhar de um descendente de judeus, que não fazia uma ideia tão clara da história de seus ascendentes e que ao descobrir os detalhes das barbaridades cometidas aos seus familiares, que neste livro representam milhares, milhões de judeus, torna essa parte da narrativa dura, para o autor e também para o leitor. De forma gradativa os Ephrussi perdem seus bens, são desalojados de sua mansão e passam a morar nas dependências de empregados. O banco é desapropriado, suas obras de arte, livros e objetos pessoais são confiscados. Os filhos de Viktor e Emmy não estão mais em Viena, apenas Rudolf, o mais novo. Elizabeth casou-se e depois da Holanda foi para a Inglaterra; Ignace estava nos Estados Unidos, mas volta no fim da guerra, servindo o exército americano; Gisele, a filha mais nova também havia deixado Viena anos antes. Só Viktor e Emmy se mantêm na cidade (Rudolf consegue sair meses depois). O ano é 1938: “Há terror. Pessoas pegas nas ruas e levadas em caminhões. Milhares de ativistas, judeus, baderneiros, são levados a Dachau (...) há recados dos amigos que estão indo embora (...) Os primos de Emmy, Franz e Mitzi Wooster, partiram. Seus amigos mais íntimos, os Gutmann, se foram no dia 13. Os Rothschild se foram (...) não é fácil sair pela porta e deixar tudo para trás.” E eles não querem fazer isso. Não querem deixar para trás uma vida. Não querem o exílio. De Wall descreve essa sensação muito bem:
“E no dia 27 de abril sai a declaração oficial de que a propriedade do 14 Dr. Karl Lueger Ring, Viena I, anteriormente o Palais Ephrussi, foi completamente arianizada. Uma das primeiras a receber tal honraria. Do lado de fora daqueles cômodos que lhe foram concedidos, do outro lado do pátio, o quarto de vestir e a biblioteca parecem absurdamente próximos. Eis o momento, penso, em que começa o exílio, o momento em que o lar está logo ali, mas ao mesmo tempo, muito, muito distante. A casa já não era mais deles. Estava cheia de gente, algumas pessoas fardadas, algumas de terno. Pessoas contando os cômodos, fazendo listas de objetos e quadros, levando coisas embora. Anna está lá dentro em algum lugar. Mandaram-na ajudar a colocar tudo nas caixas e nos engradados, disseram que ela devia ter vergonha de trabalhar para os judeus.”
E mais a frente, ao visitar o arquivo judaico de Viena, conta o momento que o fez desabar perante toda aquela história trágica de sua família:
“Procuro em um livro de contabilidade o nome de Viktor e encontro um carimbo vermelho oficial sobre seu prenome. Diz ‘Israel’. Um edital decretara que todos os judeus deviam usar novos nomes. Alguém percorreu cada nome das listas de judeus de Viena e carimbou sobre eles: ‘Israel’ para os homens, ‘Sara’ para as mulheres. Estou equivocado. A família foi apagada, mas escreveram por cima de seu nome. E, finalmente, isso é que me faz chorar.”
Anexação da Áustria pela Alemanha nazista
O leitor deve estar se perguntando, e eu também me fiz essa pergunta durante toda a leitura do livro, e principalmente quando comecei a ler a III parte: essa família perdeu tudo, foi desterrada, perdeu casa, bens, livros e até roupas; como os netsuquês, peças tão pequeninas e em tão grande número, sobreviveram intactas ao saque dos nazistas? Elizabeth, após anos e muito esforço, finalmente consegue tirar o pai Viktor de Viena - sua mãe Emmy havia morrido pouco antes - e leva-o para a Inglaterra. Viena, a terra de Dichter e Denker (poetas e pensadores), tinha se transformado na terra dos Richter e Henker (juízes e carrascos). E tudo isso até 1938, ou seja, a II Guerra Mundial nem havia começado ainda. Viktor passa anos tristes na casa de sua filha, próximo a Londres: desterrado, sem seus bens - principalmente sem sua biblioteca -, seus filhos espalhados pelo mundo, e sem Emmy. Ele acompanha a guerra pelos jornais, Iggie, seu filho e o tio-avô de De Wall, está no exército americano e participa da campanha da Normandia.
Em dezembro de 1945 Elizabeth volta a Viena para tentar reaver alguns dos bens da família e o Palais Eprhussi, e mergulha em intermináveis meandros burocráticos. Ao visitar a casa onde nasceu e viveu durante tantos anos - e que seria devolvida a família e vendida por um valor irrisório, coerente com o mercado imobiliário de um país devastado pela guerra - se deparou com um escritório das autoridades americanas das forças de ocupação. Há alguns quadros ainda nas paredes que pertenciam a família e alguns livros na biblioteca, todos de pouco ou nenhum valor. A casa é um retrato de Viena: devastada pela guerra, triste e com sua identidade apagada. Teria de ser “reconstruída”, como Viena, como a Áustria, como a Europa. O oficial se mostra disposto a auxiliá-la e diz que uma velha senhora ainda mora em uma das dependências da mansão, e que talvez pudesse ajudá-la. Ele vai chamá-la. Seu nome é Anna, a fiel criada que acompanhou Emmy por décadas.
Eis o segredo da salvação dos netsuquês. Quando a Gestapo ocupou a casa, Anna foi convocada a ajudá-los: arrumar as caixas, empacotar a porcelana, etc. E na casa repleta de obras de artes, objetos de valor e de oficiais nazistas, o quarto de vestir de Emmy não era prioridade. Aquelas miniaturas, prováveis brinquedos de crianças, também não. E um por um, durante dias, semanas, foram sendo levados por Anna em seus bolsos para debaixo do seu colchão: “Então eu simplemente tirei todos. E fui guardando no colchão e dormia em cima deles. Agora que você voltou, tenho uma coisa para lhe devolver.”
De Wall divaga sobre Anna, essa figura que viveu às sombras, mas que esteve sempre junto de sua família. Andando pelo atual Palais Ephrussi, ele vai até o antigo quarto de Anna, agora refeitório da empresa que ocupa o prédio. Errando pela casa ele relembra suas pesquisas e se indaga: por que tantos amigos de seus bisavós, tantos judeus, dezenas de milhares em toda a Europa, não escaparam, e suas frágeis miniaturas repousam hoje tranquilas em uma estante em sua casa?
Elizabeth volta com os 264 netsuquês para a Inglaterra, e quando Iggie recebe uma proposta de emprego em Tóquio, fica claro para todos com quem deveria ficar a guarda dos netsuquês. Eles deveriam voltar para casa. De Wall agora abandona Viena, Elizabeth, Anna, e mergulha na vida de Iggie no Japão devastado pela II Guerra Mundial. De Wall persegue os passos do tio-avô por Tóquio: suas moradias, seu relacionamento com Jiro - o companheiro de toda uma vida no Japão, até sua morte, com 88 anos. Aqui De Wall está em terreno menos acidentado, pois ele visitou o tio algumas vezes em Tóquio, conhecia o lar de seus netsuquês no Japão. O autor então percebe que suas miniaturas tiveram cinco repousos em sua existência de coleção: o quarto de Charles em Paris, o quarto de vestir de Emmy em Viena, o colchão de Anna em Viena, as casas de Iggie em Tóquio, e agora sua casa, em Londres. Esse passeio pelo Japão, sempre perseguindo seus netsuquês, retoma a atmosfera agradável da primeira parte do livro, em Paris. Iggie e Jiro viviam recebendo amigos, visitando museus e escutando música clássica em casa, sempre à sombra da grande estante de vidro que guardava a coleção:
“Juntos exploraram o Japão, um fim de semana numa pousada especializada em trutas de rio; outro dia no litoral para o matsuri de outono - um desfile festivo de barcas vermelhas e douradas. Iam a exposições de arte nos museus de Ueno Park (...) Assistiram a Rigoletto juntos e Iggie lembrou de que tinha sido a primeira ópera que vira com a mãe no camarote deles em Viena, durante a Primeira Guerra Mundial. E assim este é o quarto lugar de descanso dos netsuquês. Uma vitrine numa sala em Tóquio depois da guerra, dando para um canteiro de camélias, onde os netsuquês são banhados tarde da noite por ondas do Fausto de Gounod a todo volume.”
De Wall consegue realizar uma narrativa na qual os “personagens” parecem estar sempre no tempo presente, mesmo que mais de 100 anos separem a Paris de Charles e a Tóquio de Iggie. O autor nos transporta para o tempo dos “personagens” e cria uma atmosfera condizente com o momento e o lugar: mágica e artística na Paris do final do século XIX, cultural e sofisticada na Viena dos primeiros anos do século XX, sufocante e opressora na Viena do entre guerras, exótica e esperançosa na Tóquio do pós Guerra. Temos, como leitores, a impressão de que o autor não nos fala de um passado apreendido em pesquisas exaustivas, mas de um presente cambiante, no qual ele, Edmund de Wall, se encontra como expectador onipresente.
O autor também retorna a Tóquio nesta última parte do livro. Em uma nova visita, encontra-se com Jiro, dorme no apartamento contíguo que pertencia a Iggie, e se prepara para a última parte da história do percurso de sua coleção. Mais uma parada, dessa vez acompanhado do irmão, agora não mais atrás de seus rastros, mas da origem de sua família, em Odessa. Ali ele sente que chegou um pouco atrasado, mas ainda encontra resquícios de seus familiares: “Alguns sinais são fugazes. Os Ephrussi continuam vivos nos contos de Isaac Babel, o cronista judeus do centro da cidade, das gangues dos cortiços. (...) Eles estão nos contos Iídiches de Sholem Aleichem.”
De Wall não sabe mais se está escrevendo um livro sobre sua família, sobre a memória, sobre uma parte da história da Europa ou sobre si mesmo, ou melhor ainda, se é um livro sobre pequenos objetos japoneses: “Tire um objeto do seu bolso e o coloque diante de si. Você começa a contar uma história.” Independente do que trata o livro: dos netsuquês, de sua família, ou de si próprio, Edmund de Wall nos legou uma grande obra literária. Uma daquelas obras que além de nos despertar a curiosidade e o intelecto, nos desperta também a generosidade, pois como disse um leitor do livro, a vontade que temos é de comprar vários exemplares para dar de presente às pessoas que amamos, para compartilhar com eles as emoções e os prazeres experimentados durante sua leitura. Um livro que nos torna intelectualmente solidários.
(Serviu como base para este texto a primeira edição publicada no Brasil pela Editora Intrínseca, em 2011. tradução de: Alexandre Barbosa de Souza. O livro ainda encontra-se em catálogo e pode ser encontrado facilmente nas livrarias.)
Edmund de Wall e alguns de seus netsuquês
Ler esta crítica foi uma viagem no tempo, e em lugares que já fomos e que ainda vamos!
Uau! Amor, este livro tem um conjunto de elementos que você gosta: leitura, história, arte, bonecos... (Miniaturas)... Viena seria outra pra você depois deste livro, né? Sua crítica impecável, e como todas, nos desperta vontade de ler. Parabéns !